quinta-feira, 13 de setembro de 2012

MEU ESTIMADO SAMURAI


  1954. O Japão, ainda sob cruel devastação provocada pela derrota na 2ª Guerra Mundial, espelhada na dupla hecatombe atômica de Hiroshima e Nagasaki, reconstrói-se e assinala o soerguimento que o transformaria, em poucas décadas, numa das principais potências econômicas planetárias. Naquele ano distante, a história da sétima arte registraria o lançamento de um clássico incontestável: Os Sete Samurais,  de Akira Kurosawa.  
   Além de Kurosawa na direção, o filme projetaria ao estrelato cinematográfico mundial os atores Takashi Kimura e Toshiro Mifume.  Do enredo, de temática retroativa ao século XVI numa aldeia de lavradores do período Sengoku, avultam simbolismos que extrapolam fronteiras de tempo e lugar, expondo universalidade de sentimentos inerentes à condição humana: idealismo, liderança, medo, fé, paixão, ódio, aceitação, bravura, solidariedade, tradição, rejeição, perspicácia, resignação e morte. 
   Exaustos da costumeira rapinagem de suas propriedades, familiares e produção agrícola, os aldeões decidem recorrer à intermediação do samurai aposentado Kambei, para contratar guerreiros que os protejam dos malfeitores armados. Após árduo trabalho de recrutamento, incluindo cooptação de combatentes desacreditados, os ronins, e treinamento de neófitos voluntários, consegue ele arregimentar seis companheiros, os quais lutarão sob seu comando e adestrarão os camponeses nos previsíveis enfrentamentos contra os salteadores, que não tardam a acontecer. No emprego judicioso da surpresa, aliado à criatividade guerrilheira, os samurais exterminam a bandidagem, deles restando apenas três ao final das refr egas, inclusive o  mencionado Kambei.
   Kurosawa, admirável construtor de tipos psicológicos, potencializa a expressão de múltiplos arquétipos no decorrer da trama, a partir da milenar pujança cultural japonesa, permeada por referências implícitas à capacidade de autodefesa e reconstrução nacionais diante de saqueadores e invasores históricos, até nuances comportamentais singelas. Autêntico compêndio psicossocial, o filme tem no personagem magistralmente interpretado por Takashi Kimura o elo condutor de uma narrativa que culmina numa reflexão do velho samurai, a traduzir o seu significado mais eloquente, logo após a retumbante vitória dos sete guerreiros medievais sobre o bando de aproximados quarenta meliantes.
   Kambei, inteligente e sensível, malgrado a irretocável missão finalizada chora as mortes dos seus, quando conjectura ser a conquista exclusiva dos lavradores: ao refletir, considera tanto bandidos quanto samurais perdedores, pois a violência, a serviço do Bem ou do Mal, veicularia vírus de irrazoabilidade congênita contrário à celebração de vida e paz explicitada no trabalho edificante dos habitantes da aldeia, na semeadura produtiva da lavoura de arroz. Semana passada, ao rever a magnífica obra do extraordinário cineasta melhor percebi o viés interpretativo de Kambei e pus-me também a refletir sobre o refinamento da sensibilidade, que há tempos perscruto em modernos samurais conhecidos.
   A maturidade, antessala crepuscular da senectude existencial de parte da Humanidade, geralmente suaviza condutas e enternece corações supostamente empedernidos, mutação comportamental bem notória na ambiência militar, cujas rigorosas demandas institucionais não raro conduzem a posturas sisudas e ao cultivo de personas rígidas e inflexíveis. Compreende-se não ser alentador à imperativa consecução dos tradicionais OII dos PP conduzir-se a instrução, em qualquer nível, de maneira trêfega, escrachada ou envolta em delicadezas estranhas ao manu militari, centrado em atividades de risco, na superação de vicissitudes, no sacrifício próprio, no fortalecimento do corpo e da mente; igual validade se aplica ao cotidiano, no exercício das atribuições hierárquicas e funcionais.  A mística do Ferro e Aço, Fogo e Balaço, lema genial consagrado pelo excelso guru Ivus Salvanyus mostra-se inadequada a rostinhos angelicais, vozes sussurrantes e personalidades cambiantes.     
   Entretanto companheiros há que exacerbam no culto às respectivas personas profissionais, tornando-se quase caricaturais. Encarnam carrancas medonhas plasmadas pela obssessiva seriedade artificial, assumem expressões faciais enfadonhas das quais permanecem reféns, personificando os chamados “narizes cheiradores de ratos”, municiadores involuntários de tipos cômicos aos alegres shows do recalque das escolas militares, exalando autossuficiência mórbida capaz de emparedá-los no domínio do ridiculamente antipático. Todavia, mesmo a esses xiitas da imagem postiça a moderação das veneráveis cãs reserva o beneplácito da salvação, o que venho testemunhando satisfeito.
    Simpáticos, agradáveis e acessíveis, ora vejo ex-comandantes carrancudos, ex-instrutores intragáveis, ex-companheiros trombudos, ex-subordinados insuportáveis transmigrados em perfeitos gentlemen aristocráticos da velha Albion, sem dúvida graças aos efeitos mágicos de varinha de condão da maturidade redentora e ao distanciamento compulsório dos quartéis. Redescobrem o valor de emoções pueris como o mais simples dos mortais, riem com naturalidade, curtem a despreocupação afetuosa dos pequenos grandes momentos, lacrimejam das pieguices noveleiras, até mesmo dos golaços e furadas bisonhas dos times de coração. Bregas ou não, voltam a ser gente como a gente. Gentileza ainda que tardia, parece ser o brado retumbante dos que reconquistaram a identidade própria, sem receio de censuras vãs ou patrulhamentos descabidos. Ótimo!!!
   Há, no entanto, samurais na melhor acepção da palavra que sempre perfilharam a cordialidade na conduta pessoal. Sem arroubos, elegantes, discretos, desprovidos de marketing e propaganda, talvez assim explicada a solidez de suas reputações individuais, porquanto abrigadas sob o manto  indestrutível da sinceridade espontânea.  Conheço muitos, aos quais aqui rendo homenagem devida na figura de eminente confrade da Turma, do qual as circunstâncias mundanas pouco nos aproximaram em mais de quatro décadas.
   Jamais fomos companheiros de pelotão, ou de companhia, no Curso Básico da AMAN; escolhemos Armas distintas, nunca servimos próximos, nem compartilhamos outros bancos escolares durante nossas carreiras. Apesar de tudo nos separar, externo convicto meu elevado apreço ao inspirador deste texto, fruto de percepções sutis a esta altura do campeonato cristalinas, amparadas em indícios consolidados pela perspectiva temporal.  Se Deus está nos detalhes, segundo reza o credo minimalista, a justa apreciação da subjetividade alheia deriva de gestos quase imperceptíveis, na fina captação de atitudes distraídas que desnudam a alma exposta, indefesa e verdadeira de quem se observa.
   Bem amigos, do samurai de gentileza afiada desde a juventude citarei apenas dois episódios definitivos. O primeiro, ainda cadete, quase aspirante, está ao alcance da Turma na Revista Agulhas Negras de 1972, no sopé da página terminal da Artilharia. Lá, num preito de profunda emoção, eternizou necrológio ao saudoso Galdino, companheiro dileto que tão cedo se foi, bruscamente apartado da vida. O teor, que me abstenho de reproduzir por considerá-lo inseparável do contexto memorial-afetivo da RAN, retrata a rica sensibilidade do redator na lembrança sentida do amigo desaparecido, do qual - Choramos saudades suas... - nas palavras iniciais da bela homenagem póstuma.   
   Noutro gesto público, já no alvorecer deste 2012, inspirou-me  a perpetrar a Visão de Brasília, poemeto sofrível porém honesto, onde o enalteço e ao Ribas, os dois mantendo bem elevado o astral da Nação72 na Capital Federal à época do inesquecível Encontro sobre as Ondas.  Se dúvida persistia, enfim desvendo o segredo da identidade do nosso personagem.    
   O Arakaki,  o gentil e guerreiro Arakaki é o meu estimado samurai, representante acabado dessa espontaneidade d’alma que a tantos assoma na Turma e nele encontra perfeita tradução. Tal qual o Kambei de Kurosaswa, no antológico Os Sete Samurais, a ele reverencio pela cordialidade desinteressada, amizade sincera e sabedoria proverbial  transparentes nos detalhes divinais do seu comportamento exemplar.    

Rio, 11 de setembro de 2012
Cad Cav 1039/72, Nilo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário