1954. O Japão, ainda sob cruel devastação
provocada pela derrota na 2ª Guerra Mundial, espelhada na dupla hecatombe
atômica de Hiroshima e Nagasaki, reconstrói-se e assinala o soerguimento que o
transformaria, em poucas décadas, numa das principais potências econômicas
planetárias. Naquele ano distante, a história da sétima arte registraria o
lançamento de um clássico incontestável: Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa.
Além de Kurosawa na direção, o filme
projetaria ao estrelato cinematográfico mundial os atores Takashi Kimura e
Toshiro Mifume. Do enredo, de temática
retroativa ao século XVI numa aldeia de lavradores do período Sengoku, avultam
simbolismos que extrapolam fronteiras de tempo e lugar, expondo universalidade
de sentimentos inerentes à condição humana: idealismo, liderança, medo, fé,
paixão, ódio, aceitação, bravura, solidariedade, tradição, rejeição,
perspicácia, resignação e morte.
Exaustos da costumeira rapinagem de suas
propriedades, familiares e produção agrícola, os aldeões decidem recorrer à
intermediação do samurai aposentado Kambei, para contratar guerreiros que os
protejam dos malfeitores armados. Após árduo trabalho de recrutamento, incluindo
cooptação de combatentes desacreditados, os ronins, e treinamento de neófitos
voluntários, consegue ele arregimentar seis companheiros, os quais lutarão sob
seu comando e adestrarão os camponeses nos previsíveis enfrentamentos contra os
salteadores, que não tardam a acontecer. No emprego judicioso da surpresa,
aliado à criatividade guerrilheira, os samurais exterminam a bandidagem, deles
restando apenas três ao final das refr egas, inclusive o mencionado Kambei.
Kurosawa, admirável construtor de tipos
psicológicos, potencializa a expressão de múltiplos arquétipos no decorrer da
trama, a partir da milenar pujança cultural japonesa, permeada por referências
implícitas à capacidade de autodefesa e reconstrução nacionais diante de
saqueadores e invasores históricos, até nuances comportamentais singelas.
Autêntico compêndio psicossocial, o filme tem no personagem magistralmente
interpretado por Takashi Kimura o elo condutor de uma narrativa que culmina numa
reflexão do velho samurai, a traduzir o seu significado mais eloquente, logo
após a retumbante vitória dos sete guerreiros medievais sobre o bando de
aproximados quarenta meliantes.
Kambei, inteligente e sensível, malgrado a
irretocável missão finalizada chora as mortes dos seus, quando conjectura ser a
conquista exclusiva dos lavradores: ao refletir, considera tanto bandidos quanto
samurais perdedores, pois a violência, a serviço do Bem ou do Mal, veicularia
vírus de irrazoabilidade congênita contrário à celebração de vida e paz
explicitada no trabalho edificante dos habitantes da aldeia, na semeadura
produtiva da lavoura de arroz. Semana passada, ao rever a magnífica obra do
extraordinário cineasta melhor percebi o viés interpretativo de Kambei e pus-me
também a refletir sobre o refinamento da sensibilidade, que há tempos perscruto
em modernos samurais conhecidos.
A maturidade, antessala crepuscular da
senectude existencial de parte da Humanidade, geralmente suaviza condutas e
enternece corações supostamente empedernidos, mutação comportamental bem notória
na ambiência militar, cujas rigorosas demandas institucionais não raro conduzem
a posturas sisudas e ao cultivo de personas rígidas e inflexíveis. Compreende-se
não ser alentador à imperativa consecução dos tradicionais OII dos PP
conduzir-se a instrução, em qualquer nível, de maneira trêfega, escrachada ou
envolta em delicadezas estranhas ao manu militari, centrado em atividades de
risco, na superação de vicissitudes, no sacrifício próprio, no fortalecimento do
corpo e da mente; igual validade se aplica ao cotidiano, no exercício das
atribuições hierárquicas e funcionais. A mística do Ferro e Aço, Fogo e Balaço,
lema genial consagrado pelo excelso guru Ivus Salvanyus mostra-se inadequada a
rostinhos angelicais, vozes sussurrantes e personalidades cambiantes.
Entretanto companheiros há que exacerbam no
culto às respectivas personas profissionais, tornando-se quase caricaturais.
Encarnam carrancas medonhas plasmadas pela obssessiva seriedade artificial,
assumem expressões faciais enfadonhas das quais permanecem reféns,
personificando os chamados “narizes cheiradores de ratos”, municiadores
involuntários de tipos cômicos aos alegres shows do recalque das escolas
militares, exalando autossuficiência mórbida capaz de emparedá-los no domínio do
ridiculamente antipático. Todavia, mesmo a esses xiitas da imagem postiça a
moderação das veneráveis cãs reserva o beneplácito da salvação, o que venho
testemunhando satisfeito.
Simpáticos, agradáveis e acessíveis, ora vejo
ex-comandantes carrancudos, ex-instrutores intragáveis, ex-companheiros
trombudos, ex-subordinados insuportáveis transmigrados em perfeitos gentlemen
aristocráticos da velha Albion, sem dúvida graças aos efeitos mágicos de varinha
de condão da maturidade redentora e ao distanciamento compulsório dos quartéis.
Redescobrem o valor de emoções pueris como o mais simples dos mortais, riem com
naturalidade, curtem a despreocupação afetuosa dos pequenos grandes momentos,
lacrimejam das pieguices noveleiras, até mesmo dos golaços e furadas bisonhas
dos times de coração. Bregas ou não, voltam a ser gente como a gente. Gentileza
ainda que tardia, parece ser o brado retumbante dos que reconquistaram a
identidade própria, sem receio de censuras vãs ou patrulhamentos descabidos.
Ótimo!!!
Há, no entanto, samurais na melhor acepção
da palavra que sempre perfilharam a cordialidade na conduta pessoal. Sem
arroubos, elegantes, discretos, desprovidos de marketing e propaganda, talvez
assim explicada a solidez de suas reputações individuais, porquanto abrigadas
sob o manto indestrutível da sinceridade
espontânea. Conheço muitos, aos quais
aqui rendo homenagem devida na figura de eminente confrade da Turma, do qual as
circunstâncias mundanas pouco nos aproximaram em mais de quatro
décadas.
Jamais fomos companheiros de pelotão, ou de
companhia, no Curso Básico da AMAN; escolhemos Armas distintas, nunca servimos
próximos, nem compartilhamos outros bancos escolares durante nossas carreiras.
Apesar de tudo nos separar, externo convicto meu elevado apreço ao inspirador
deste texto, fruto de percepções sutis a esta altura do campeonato cristalinas,
amparadas em indícios consolidados pela perspectiva temporal. Se Deus está nos detalhes, segundo reza o
credo minimalista, a justa apreciação da subjetividade alheia deriva de gestos
quase imperceptíveis, na fina captação de atitudes distraídas que desnudam a
alma exposta, indefesa e verdadeira de quem se observa.
Bem amigos, do samurai de gentileza afiada
desde a juventude citarei apenas dois episódios definitivos. O primeiro, ainda
cadete, quase aspirante, está ao alcance da Turma na Revista Agulhas Negras de
1972, no sopé da página terminal da Artilharia. Lá, num preito de profunda
emoção, eternizou necrológio ao saudoso Galdino, companheiro dileto que tão cedo
se foi, bruscamente apartado da vida. O teor, que me abstenho de reproduzir por
considerá-lo inseparável do contexto memorial-afetivo da RAN, retrata a rica
sensibilidade do redator na lembrança sentida do amigo desaparecido, do qual -
Choramos saudades
suas... - nas palavras iniciais da
bela homenagem póstuma.
Noutro gesto público, já no alvorecer deste
2012, inspirou-me a perpetrar a Visão de
Brasília, poemeto sofrível porém honesto, onde o enalteço e ao Ribas, os dois
mantendo bem elevado o astral da Nação72 na Capital Federal à época do
inesquecível Encontro sobre as Ondas. Se
dúvida persistia, enfim desvendo o segredo da identidade do nosso
personagem.
O Arakaki,
o gentil e guerreiro Arakaki é o meu estimado samurai, representante
acabado dessa espontaneidade d’alma que a tantos assoma na Turma e nele encontra
perfeita tradução. Tal qual o Kambei de Kurosaswa, no antológico Os Sete
Samurais, a ele reverencio pela cordialidade desinteressada, amizade sincera e
sabedoria proverbial transparentes nos
detalhes divinais do seu comportamento exemplar.
Rio, 11 de
setembro de 2012
Cad Cav
1039/72, Nilo.
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