Ao interagir na rede expondo ideias próprias, venho sofrendo críticas
acerbas de amigos e companheiros diletos. Algumas, sob a mais perversa
modalidade de desaprovação, a indiferença intencional e sistemática;
outras, sob tons irônicos de descrédito e menos valia explícita. Hoje,
inflado nas asas da audácia insensata e inspirado em episódio recente,
resolvi dar o troco apregoando este arremedo de tese.
Melhor combater à sombra, há milênios já ponderava o sábio general
Leônidas, o das Termópilas. Optei, portanto, por suave desafiar de
oponentes reconhecidos, no TO deste leve torpedeamento retórico: dois
estimados analistas contudentes do meu estilo subliterário, pois a eles
ao menos devo a gratidão de me externarem juízos, mesmo depreciativos.
Preliminarmente, julgo de bom alvitre esclarecer a natureza de suas
personalidades e da peculiar relação que desde eras imemoriais nos
aproxima.
Detentores de perfis comportamentais semelhantes, destacam-se pela
inteligência soberba, caráter ilibado, coragem em suas acepções
viscerais, lealdade e devoção aos amigos. Profissionais exponenciais,
empreendedores e bem-sucedidos nos propósitos pessoais, exercem natural
influência na ambiência de suas atuações, onde são justamente
prestigiados. Desfrutar-lhes da amizade excede em privilégio.
Cartesianos de carteirinha, condição em si apenas não-demeritória,
absorveram tamanho viés de crua objetividade nas percepções sobre o
planeta, a vida e os indivíduos que ora carecem de revisão de
fundamentos, em inescapável back to basic atitudinal. Escravos da
funcionalidade avassaladora e triunfante, estão quase a se desumaniza
r, rumo ao patamar de autênticos andróides caricaturais.
Domingo, 13 de maio corrente, o outrora aristocrático Fluminense
sagra-se campeão carioca deste ano. No dia da redenção da escravatura, ó
coincidência astral, o clube das Laranjeiras, nas origens ditas
fidalgas avesso à participação de negros, mulatos e descamisados em
suas equipes de representação, reconquista insigne laurel esportivo. Ao
associar a data e a vitória, assoma a extraordinária figura de
torcedor antediluviano: Nelson Rodrigues, o afamado escritor,
dramaturgo e jornalista, que se vivo estivesse completaria centenário
de vida em 2012. A promulgação da Lei Áurea, o Fluminense, o tricolor
Nelson e meus detratores, aonde chegaremos nesta senda de trajeto
surreal?
Nelson personificava superposição rara de manifestações genéticas,
pois ao desmoralizar a segregação natural entre persona literária e
individualidade, preservava-se ser uno e indivisível em tempo integral.
Frasista emérito, foi arguto apreciador da natureza humana, provocando
frisson quando dela desmascarava as entranhas da hipocrisia, sobretudo
lá pelos anos 1950 e 1960, em crônicas publicadas nos jornais da
época. A série A Vida Como Ela É, de duradoura periodicidade diária,
inspirou-lhe a concessão do apelido de Anjo Pornográfico, uma de suas
celebrizações notórias. Ao futebol, paixão de toda uma vida, dignou-se
oferecer status de refinamento literário até então impensável;
conjectura-se que, depois dele, ninguem mais deveria ousar escrever
sobre o antigo esporte bretão. Da infinidade de frases, expressões e
pensamentos derivados da sua pena genial, extraio personagem de
atualidade instigante: O Idiota da Objetividade (IO).
Há idiotas e idiotas. O idiota fundamental, categoria da qual sou
sócio remido, é de facílima identificação. Somos beócios em inarredável
estado de passividade existencial, contemplativos diante do mundo e
da mundanidade. Assim nascemos, assim permanecemos, assim
inapelavelmente seremos. Nelson asseverou que “o grande acontecimento
do século (XX) foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”;
referia-se, sem dúvida, ao idiota absoluto, ao idiota fundamental que
tão bem represento. Embora também o tenha consagrado, subestimou a
dimensão fantástica que o idiota da objetividade alcançaria no século
seguinte.
Os amigos diletos antes citados, os quais alvejo nestas palavras,
considero-os estimados idiotas da objetividade. De novo enfatizo as
excelsas virtudes enunciadas, malgrado não os absolverem da pecha
rodrigueana, de preocupante aplicabilidade nestes tempos de supremacia
distorcida da pura lógica cartesiana.
Um, menos tolerante, há muito pespegou-me o rótulo de O Bostejador.
Na verdade, eminente causídico e possuidor de notório saber jurídico,
transita entre a rigorosa via da conduta castrense nativa e os
maneirismos sutis da via forense adotiva. Eu, bostejador, iletrado cabo
das baias diante do advogado convincente e ilustre? Fala sério,
mermão...
O outro, tricolor tresloucado, vive a citar Nelson, numa
reverberação suspeita que o denuncia como cultor de uma frase só:
aquela do “então vos digo, etc e tal; e podem me dizer que os fatos
provam o contrário, que eu vos respondo: pior para os fatos”. Ora, ora,
ora, mestre do conhecimento wilkipédico, oriente-se antes de adentrar o
brejo montando a vaca sagrada. Amigo especial e querido, tal qual o
doutor das leis, chega a causar-me perplexidade sua piração autofágica.
Dia desses, ao criticar texto de minha lavra, expeliu esta pérola: “...
comparar a infância de um dos Beatles com as reuniões inconsequentes
de uma cambada de coroas??? Só vc mesmo. Apesar do comentário,
excelente texto. Está se superando. Nesse texto con seguiu até alguma
objetividade...”. Quer dizer que os verdes anos iluminados de John
Lennon, na visão colonizada do crítico, foram comparados à obscuridade
decadente de velhinhos amontoados no CMPV? Fala sério, mermão campeão.
Você retratou a mais perfeita tradução do IO, na lídima versão
fundadora: a de alguém que não enxerga um palmo além do óbvio ululante
de babar na gravata.
Parodiando o profeta Nelson, então eu vos digo, caros amigos IO:
administrem-se doses cavalares da melhor poesia. Temperem a busca
frenética da objetividade com o lirismo de certos bostejos
inconsequentes, pois “o adulto não existe. O homem é um menino perene”,
ainda segundo o imortal escritor tricolor. Recorrendo a outros
mestres, Tom e Newton Mendonça, no peito dos bostejadores também bate
um coração. Tanto bate que este humilde cabo das baias, a findar, lhes
agradece a compreensão de seus desvarios, reitera insuperável estima e
oferece aplicação inicial da medicação sugerida, nos versos seguintes:
Dupla existência da verdade
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que
se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por
que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as
suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era
que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e
outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se
haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao outro, mas
cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
Fernando Pessoa, Encontro de Poesia.
Dom Obá III, idiota fundamental, bostejador reles e apreciador da
amizade incondicional. Da Quinta histórica de São Januário, já
concentrado para a noite de amanhã.
Rio, 15 de maio de 2012. Nilo
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