quinta-feira, 24 de maio de 2012

IDIOTAS E BOSTEJADORES

 Ao interagir na rede expondo ideias próprias, venho sofrendo críticas acerbas de amigos e companheiros diletos. Algumas, sob a mais perversa modalidade de desaprovação, a indiferença intencional e sistemática; outras, sob tons irônicos de descrédito e menos valia explícita. Hoje, inflado nas asas da audácia insensata e inspirado em episódio recente, resolvi dar o troco apregoando este arremedo de tese.

Melhor combater à sombra, há milênios já ponderava o sábio general Leônidas, o das Termópilas. Optei, portanto, por suave desafiar de oponentes reconhecidos, no TO deste leve torpedeamento retórico: dois estimados analistas contudentes do meu estilo subliterário, pois a eles ao menos devo a gratidão de me externarem juízos, mesmo depreciativos. Preliminarmente, julgo de bom alvitre esclarecer a natureza de suas personalidades e da peculiar relação que desde eras imemoriais nos aproxima.

Detentores de perfis comportamentais semelhantes, destacam-se pela inteligência soberba, caráter ilibado, coragem em suas acepções viscerais, lealdade e devoção aos amigos. Profissionais exponenciais, empreendedores e bem-sucedidos nos propósitos pessoais, exercem natural influência na ambiência de suas atuações, onde são justamente prestigiados. Desfrutar-lhes da amizade excede em privilégio. Cartesianos de carteirinha, condição em si apenas não-demeritória, absorveram tamanho viés de crua objetividade nas percepções sobre o planeta, a vida e os indivíduos que ora carecem de revisão de fundamentos, em inescapável back to basic atitudinal. Escravos da funcionalidade avassaladora e triunfante, estão quase a se desumaniza r, rumo ao patamar de autênticos andróides caricaturais.

Domingo, 13 de maio corrente, o outrora aristocrático Fluminense sagra-se campeão carioca deste ano. No dia da redenção da escravatura, ó coincidência astral, o clube das Laranjeiras, nas origens ditas fidalgas avesso à participação de negros, mulatos e descamisados em suas equipes de representação, reconquista insigne laurel esportivo. Ao associar a data e a vitória, assoma a extraordinária figura de torcedor antediluviano: Nelson Rodrigues, o afamado escritor, dramaturgo e jornalista, que se vivo estivesse completaria centenário de vida em 2012. A promulgação da Lei Áurea, o Fluminense, o tricolor Nelson e meus detratores, aonde chegaremos nesta senda de trajeto surreal?

Nelson personificava superposição rara de manifestações genéticas, pois ao desmoralizar a segregação natural entre persona literária e individualidade, preservava-se ser uno e indivisível em tempo integral. Frasista emérito, foi arguto apreciador da natureza humana, provocando frisson quando dela desmascarava as entranhas da hipocrisia, sobretudo lá pelos anos 1950 e 1960, em crônicas publicadas nos jornais da época. A série A Vida Como Ela É, de duradoura periodicidade diária, inspirou-lhe a concessão do apelido de Anjo Pornográfico, uma de suas celebrizações notórias. Ao futebol, paixão de toda uma vida, dignou-se oferecer status de refinamento literário até então impensável; conjectura-se que, depois dele, ninguem mais deveria ousar escrever sobre o antigo esporte bretão. Da infinidade de frases, expressões e pensamentos derivados da sua pena genial, extraio personagem de atualidade instigante: O Idiota da Objetividade (IO).

Há idiotas e idiotas. O idiota fundamental, categoria da qual sou sócio remido, é de facílima identificação. Somos beócios em inarredável estado de passividade existencial, contemplativos diante do mundo e da mundanidade. Assim nascemos, assim permanecemos, assim inapelavelmente seremos. Nelson asseverou que “o grande acontecimento do século (XX) foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”; referia-se, sem dúvida, ao idiota absoluto, ao idiota fundamental que tão bem represento. Embora também o tenha consagrado, subestimou a dimensão fantástica que o idiota da objetividade alcançaria no século seguinte.

Os amigos diletos antes citados, os quais alvejo nestas palavras, considero-os estimados idiotas da objetividade. De novo enfatizo as excelsas virtudes enunciadas, malgrado não os absolverem da pecha rodrigueana, de preocupante aplicabilidade nestes tempos de supremacia distorcida da pura lógica cartesiana.

Um, menos tolerante, há muito pespegou-me o rótulo de O Bostejador. Na verdade, eminente causídico e possuidor de notório saber jurídico, transita entre a rigorosa via da conduta castrense nativa e os maneirismos sutis da via forense adotiva. Eu, bostejador, iletrado cabo das baias diante do advogado convincente e ilustre? Fala sério, mermão...

O outro, tricolor tresloucado, vive a citar Nelson, numa reverberação suspeita que o denuncia como cultor de uma frase só: aquela do “então vos digo, etc e tal; e podem me dizer que os fatos provam o contrário, que eu vos respondo: pior para os fatos”. Ora, ora, ora, mestre do conhecimento wilkipédico, oriente-se antes de adentrar o brejo montando a vaca sagrada. Amigo especial e querido, tal qual o doutor das leis, chega a causar-me perplexidade sua piração autofágica. Dia desses, ao criticar texto de minha lavra, expeliu esta pérola: “... comparar a infância de um dos Beatles com as reuniões inconsequentes de uma cambada de coroas??? Só vc mesmo. Apesar do comentário, excelente texto. Está se superando. Nesse texto con seguiu até alguma objetividade...”. Quer dizer que os verdes anos iluminados de John Lennon, na visão colonizada do crítico, foram comparados à obscuridade decadente de velhinhos amontoados no CMPV? Fala sério, mermão campeão. Você retratou a mais perfeita tradução do IO, na lídima versão fundadora: a de alguém que não enxerga um palmo além do óbvio ululante de babar na gravata.

Parodiando o profeta Nelson, então eu vos digo, caros amigos IO: administrem-se doses cavalares da melhor poesia. Temperem a busca frenética da objetividade com o lirismo de certos bostejos inconsequentes, pois “o adulto não existe. O homem é um menino perene”, ainda segundo o imortal escritor tricolor. Recorrendo a outros mestres, Tom e Newton Mendonça, no peito dos bostejadores também bate um coração. Tanto bate que este humilde cabo das baias, a findar, lhes agradece a compreensão de seus desvarios, reitera insuperável estima e oferece aplicação inicial da medicação sugerida, nos versos seguintes:

Dupla existência da verdade
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
Fernando Pessoa, Encontro de Poesia.
Dom Obá III, idiota fundamental, bostejador reles e apreciador da amizade incondicional. Da Quinta histórica de São Januário, já concentrado para a noite de amanhã.
Rio, 15 de maio de 2012. Nilo

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