A minha subunidade tinha,
também, um papel importante nessa operação. Além de apoiar o Comando da Brigada
no desdobramento do Posto de Comando na área de operações, seus integrantes
mobiliavam as diversas seções de Estado-Maior e, também, as denominadas de
repartições administrativas. Fui convocado pelo chefe da 3ª Seção e lá
compareci. Adentrei a imensa sala situada no QG, cumprimentei os oficiais e
praças, notando a grande agitação reinante. Apresentei-me ao Chefe e, após as
saudações, sentei-me.
O Chefe da 3ª Seção da Brigada era
o coronel de Artilharia WENCESLAU MALTA. Suas qualidades profissionais eram
sobejamente testadas pela diversidade de missões que lhe eram afetas e pela
própria dinâmica que a atividade de salto acrescenta a qualquer modalidade de
instrução militar. Por diversas vezes pude observar a forma peculiar com que o
Chefe da 3ª Seção controlava as situações adversas, empregando a sua
experiência profissional e o bom humor, fatores que contagiavam aqueles que se
encontravam trabalhando sob suas ordens. Em determinada ocasião, uma subunidade
de um Batalhão que acabara de realizar um exercício em Boa Vista (RR)
necessitava de resgate aéreo com urgência. Entretanto, as aeronaves inicialmente
direcionadas para aquele apoio tinham sido deslocadas para atender uma
calamidade em parte do território nacional. Ao mesmo tempo, o Centro de
Instrução solicitava prioridade para resgatar os alunos do Curso de Forças
Especiais que haviam terminado uma semana de intensos exercícios em Porto
Murtinho (MS) e deveriam se deslocar para o CIGS, em Manaus (AM). Como
conseguir aeronaves para atender as necessidades apresentadas naquele momento,
no desenrolar de tantas outras missões em andamento? No calor de toda aquela
situação delicada o coronel reagia da seguinte forma: abria um sorriso que
deixava dúvidas se era de pavor ou zombaria com o problema apresentado e, ato
contínuo, disparava uma série de impropérios. Após essa natural descontração,
começava a distribuir ordens que contribuíam para solucionar aquela momentânea
dificuldade. Normalmente, conseguia o seu intento com sucesso e a paz voltava a
sua seção. Por pouco tempo.
O coronel Malta foi campeão
olímpico de pentatlo moderno, um dos mais destacados atletas do Exército e
orgulho da Turma de 1954 da AMAN. Como ser humano, era uma pessoa dotada de
excelente humor, educado, prestativo e sabia valorizar a vida com intensidade.
A prática de esportes contribuiu para que ostentasse uma capacidade física
invejável. Exímio jogador de dupla de voleibol confiava na sua habilidade no
trato com a bola e o domínio da quadra. Dessa forma, mantinha uma caderneta
destinada a controlar os militares e civis que lhe deviam rodadas de choppes,
em razão de partidas perdidas em calorosos embates nas quadras de areia,
cimento e praia. Ter o nome naquela caderneta era motivo de gozação.
Como já narrado, encontrava-me
sentado em frente a sua mesa de trabalho para acertar os detalhes do apoio que
a companhia deveria prestar ao Comando da Brigada na Operação SACI.
Inicialmente, negociávamos a composição da minha equipe na operação, em face
das restrições de aeronaves. De repente, toca o telefone e o coronel identifica
do outro lado da linha um major da AD/1, velho freguês de dupla de voleibol e
perdedor sempre ávido a solicitar uma revanche, em razão de sua dívida em
choppes alcançar números preocupantes para um jogador com reputação naquela
atividade. O major estava desafiando o coronel para uma partida na quadra do QG
da Brigada, às 16h30min daquela tarde. Rapidamente, como uma águia a espreita,
o coronel quis saber quem era o parceiro do seu desafiador, pois esse dado era
fundamental para que ele pudesse avaliar os riscos e escolher quem seria o seu
companheiro na partida. O major respondeu que era um tenente de Artilharia.
Completou, acrescentando o nome, a unidade e a Turma da AMAN do jovem tenente.
O coronel anotou os dados e, prontamente, aceitou o desafio. Antes, porém,
lembrou ao major que a partida seria realizada de acordo com a cláusula mais
importante do regimento interno que controlava aquele tipo de embate: o
perdedor pagaria dois choppes ao vencedor.
Enquanto acertávamos detalhes da
operação, ele emanava uma série de ordens. Solicitou que fosse realizada uma
ligação telefônica com o comandante do 8º GAC Pqdt, em razão do tenente ser de
Artilharia e, como explanado, ele precisava de informações sobre o oficial
subalterno que jogaria ao lado do major. Comandava a unidade o Coronel de Artilharia
Ary Schittini Mesquita. Ele recebeu do coronel Malta a solicitação de localizar
um tenente que pertencesse a Turma de AMAN do parceiro do major. Pouco depois,
ligou um tenente do GACPqdt e passou informações vitais para o coronel. Revelou
que o seu companheiro de Turma era um excelente jogador de voleibol, com
passagens pela seleção da Academia, Festival Sul-Americano de Cadetes e das
Forças Armadas. Um verdadeiro atleta, consagrado campeão da modalidade e hábil
no jogo de dupla. Percebi que, a partir dessas informações, o Chefe da 3ª Seção
demonstrava preocupação com o adversário. Ele, então, revelou que precisava
alterar a estratégia para derrotar o velho freguês.
Um dos seus parceiros mais
habitual era o então capitão Fernando Azevedo e Silva, da Turma de 1976 e atual
oficial general, com passagens pelas diversas seleções da Força e excelente
jogador de dupla. Mas, para aquele embate, era preciso equilibrar as equipes no
quesito juventude. Para tanto, realizou um contato telefônico com o comandante
do 20º BlogPqdt, Coronel Eng Manoel Cândido de Andrade, ao qual solicitou que o
soldado Marcos fosse liberado para estar na quadra de voleibol do QG da
Brigada, naquela tarde, às 16h30min. Recomendou, com muita ênfase, que o
soldado não se esquecesse de conduzir a ferramenta.
Não pude me conter e
questionei que ferramenta era aquela e porque a escolha do soldado Marcos. O coronel
disse-me que o soldado era levantador do time de Voleibol do Botafogo, que a
época possuía o melhor esquadrão do Rio de Janeiro, o que equilibraria a
contenda quanto o aspecto juventude. Quanto à ferramenta, manteve a surpresa.
Ele convidou-me a assistir a partida e verificar, com os próprios olhos, a
necessidade e a importância daquele instrumento específico de trabalho para o
embate.
Passei o restante da manhã
pensando qual seria a importância da misteriosa ferramenta e torcendo que
chegasse logo à hora da partida. Após realizar a formatura rotineira de término
de expediente e dispensar a subunidade, iniciei o deslocamento para o
Quartel-General da Brigada, local onde seria realizada a partida. Ao Chegar,
encontrei o major e seu parceiro. O oficial superior vestia um calção preto e
demonstrava possuir intimidade com a atividade que iria desenvolver. O seu
parceiro, jovem oficial subalterno, não poupava esforços para evitar que a bola
tocasse o chão, naqueles momentos de aquecimento que antecedia a peleja. A
impressão que se tinha era de que o entrosamento da dupla chegava próximo da
perfeição. Tudo pronto. Faltavam o coronel Malta e o seu companheiro de equipe.
Não foi difícil
identificar o soldado Marcos. Àquela hora, somente estavam no QG o pessoal de
serviço e alguns integrantes da 3ª Seção. Dessa forma, qualquer outro militar
que estivesse na área da quadra chamava a atenção. Visualizei, a uns vinte
metros, um soldado com uma tesoura de cortar grama. O dito cortador de grama,
aliás, enganador, devia ser o soldado Marcos. Fingia que estava realizando uma
tarefa árdua e cumpria seu papel no espetáculo preparado pelo coronel.
Chega o coronel Malta. Aos
berros, reclama do atraso do capitão Fernando e solicita que o Comandante da
Guarda do QG realize ligações telefônicas para o Destacamento Precursor Pqdt e
baiúca dos Afonsos, na busca do paradeiro do citado oficial. Ora, o capitão
Fernando estava realizando uma atividade longe do Rio de Janeiro e nem sabia da
partida. Tudo era uma encenação da velha e ladina raposa. Claro que o capitão
não foi localizado e, no momento, crescia a possibilidade de a partida não se
realizar.
Ao perceber a situação, o
major começa a lamentar que a partida não fosse acontecer e que, pensando com
seus botões, ele não poderia perder a chance de derrotar o coronel, abatendo de
sua extensa dívida dois choppes. Foi uma atividade estudada com muita cautela.
Idealizada e programada para vencer, principalmente, em face da escolha de seu
parceiro. Tinham realizados vários treinamentos e o momento era aquele. Talvez
não houvesse outra oportunidade como a que se apresentava.
O coronel, então, é
pressionado pelo major. Demonstrando ansiedade, o desafiante afirma que a
partida precisa ser realizada. A ausência do capitão Fernando não pode ser
motivo para suspender a peleja. O
coronel argumenta que não iria correr de um desafio, pois tinha uma estória de
conquistas a defender. Era só encontrar um parceiro. Qualquer um! Exclama o
coronel.
Momentos de tensão.
O coronel procura, olha
para todos os cantos e, num lance estudado, localiza o solitário soldado.
Concentra o olhar na direção do soldado, que continuava fingindo estar
utilizando a tesoura, e pergunta: “Mocorongo! Ei! Mocorongo! você sabe jogar
voleibol? Com hesitação, o soldado responde que sim, sem demonstrar muita
firmeza, como se a sua participação fosse apenas para permitir a realização da
partida. Virando-se para o major, o coronel, com a expressão facial de lamento,
questiona: “Aceita ele como meu parceiro?
O major ou qualquer
cristão que estivesse assistindo a cena jamais iria pensar ou acreditar que um
soldado, com uma tesoura de cortar grama, pudesse incomodar uma dupla treinada
e pronta para derrotar qualquer adversário. Também, deve ter pensado, que sorte
a deles que aquele militar estava ali naquele momento. O coronel não poderia
convocar um soldado da guarda do QG. Impossível essa hipótese. O major deve ter
raciocinado: “um soldado e, ainda, portando uma tesoura de cortar grama.
Chamado de mocorongo. Isso é sopa demais”. Aceitou.
O coronel, então, convoca
o soldado para a partida e alerta, em tom baixo: “Marcos! garoto! mesmo esquema
de sempre, perdemos a primeira e ganhamos as outras duas”. Virou-se para mim e
falou: “percebeu, capitão, que ninguém acredita que um soldado, manuseando uma
tesoura de cortar grama e sendo chamado de mocorongo, possa ser um excelente
jogador de dupla de voleibol. Esse é o mistério da ferramenta. A sua presença
no local da contenda confunde o adversário”. Concluiu, com o sorriso maroto.
Foi o que aconteceu.
Derrota do major e do tenente. Ao término da partida, pude ver o coronel
anotando mais dois choppes na conta do major, em sua inseparável caderneta. O
coronel Malta, que era um cavalheiro, convidou para que todos fossem ao
“MARLENE”, tradicional restaurante localizado em frente ao Portão da Base Aérea
dos Afonsos, a fim de consumirem rodadas de choppes. É claro que seriam pagas
pelo major, naturalmente.
Relembrando esse
episódio, presto minha homenagem ao chefe e amigo, no momento em que tomo o
conhecimento de seu passamento, em dezembro de 2010. De luto o Exército
Brasileiro, a Artilharia Pára-quedista, seus amigos, admiradores e jogadores de
dupla de voleibol.
Cadete Simões
Junior – Curso de Infantaria - AMAN 1972.
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