Longe vão os meus tempos de internauta bissexto. Depois que aderi à
rotina de acesso à web descobri o quanto a vida pode oferecer de belas
surpresas, inimagináveis a cerébros desprovidos de intelecto superior,
como o deste rabugento provecto. Da cega indiferença ao entusiasmo
incontido ignorei etapas, logo tornando-me usuário vibrante da rede e
cultor de suas infinitas possibilidades de achegar-se da sabedoria
plena, via democratização do conhecimento.
A paixão estonteante, sublime fase inaugural do amor, envolveu
descobertas maravilhosas. Seduziam-me os títulos das mensagens
recebidas, premonitórios de revelações aptas a produzirem enorme
frisson na psique do neófito atarantado. Encantado com as promissoras
verdades dignas de absorção, corria a abrir vastíssima sucessão de
e-mail, prenhe de curiosidade. Mesmo assim, malgrado prisioneiro de
atração mórbida, escorava-me nos valores puritanos de vetusta formação
cavalariano-cruzmaltina e, de antemão, deletava apenas indicações de
baixo erotismo e de vulgaridades cruentas sobre o Gigante da Colina.
Temas outros eram bem-vindos e propiciariam inegável ajuda ao meu
engrandecimenrto pess oal, tal qual mostrarei no prosseguimento.
Como é Feito o Papel Higiênico que Importamos da China; O Casamento
Minnie-Pateta; Namoro com o Mecânico; Café da Manhã; Um Homem Deve Usar
Brinco?; Papel Alumínio: Dez Maneiras de Usar; Conexão da Inverdade;
Nova Tabela: Será Verdade?; Nota de Esclarecimento Programa de TV; Rico
Também Anda de Ônibus; Porque Prefiro os Cachorros aos Gatos; A Rainha
dos Baixinhos ... na Putaria; Pense em um Sacana; A Mordida do
Mineirinho; Pensamento Sexual do Dia; Laudo de Conjunção Carnal em SP e
Orgasmograma...Colossal!!!, perfazem amostra de mensagens recentemente
postadas em minha caixa postal. Evidentemente que as seis derradeiras
listadas, coerente com os princípios antes mencionados tiveram de
imediato o rumo da lixeira; aqui só as extern o sob o propósito
singular de evidenciar a extensa pluralidade da temática abordada. E
nada mais, juro.
A cada título exposto, correspondia peculiar reação deste ingênuo
primata. Como é Feito o Papel Higiênico..., por exemplo, ainda está a
inspirar-me séria análise geopolítica sobre o teor das relações
bilaterais sino-brasileiras. Jamais suspeitei estivesse em nível tão
estreito, e que a cultura daquele país asiático pudesse adentrar com
tamanha facilidade e voluntarismo a intimidade de milhões de
conterrâneos; Um Homem Deve Usar Brincos? e Papel Alumínio: Dez Maneiras
de Usar, deflagraram-me graves questionamentos existenciais, enquanto
Nova Tabela: Será Verdade? causou mergulho abissal no domínio das
pulsões primárias, o Id freudiano de instintos e sonhos irrealizados
perante o Superego controlador. São meras ilustrações pinçadas de amplo
universo, porém representativas de quanto a familiaridade com a rede
viria a influenciar este ser decrépito, adequando-o aos tempos
modernos.
Além do caráter pedagógico nelas veiculado, as principais matérias
enviadas coincidem num aspecto: a reiteração abusiva, parecendo haver
perverso conluio dos remetentes para ensandecer este destinatário. As
de conotação sexual são repetidas ad nauseam e dispenso-me comentá-las;
numa única jornada, recebi nove Notas de Esclarecimento de Programa de
TV, sete de Rico Também Anda de Ônibus e seis de Porque Prefiro os
Cachorros aos Gatos, isso sem computar demais remessas esparsas em
diferentes datas. Durma-se com um bombardeio desses, autêntica eficácia
de exocets virtuais. Até aí entretanto imperava relativa calmaria, se
comparado ao que estava a acontecer.
Quase a submergir na enxurrada de mensagens, levo jab, sou
nocauteado e, cambaleante, reerguido para divisar o seguinte título: “ Nem Negro, nem Índio, nem Viado, nem Assaltante, nem Guerrilheiro, nem Invasor. Como Faço?.
Pauleira hard, pura Klu Klux Klan cabocla século XXI, ainda atordoado,
visão turva com o gentilíssimo chamamento da matéria, tento
identificar o remetente: trata-se de estimado confrade da Arma Ligeira.
Menos mal, penso, atenuante primária. Abro o e-mail e nova surpresa ao
me deparar com o título original: Sou Branco, Honesto, Contribuinte, Eleitor, Hetero...Para Quê?,
da lavra de renomado tributarista. Constatação óbvia: o meu fraterno
perissodáctilo, no adotar o artifício da negação enfatizante, de moto
próprio elevou o tom da indignação do tal jurista ariano aos píncaros
da delicadeza absoluta. Qualé, Dom AT, linha do tempo Alabama-Nikiti ?
Evitarei adentrar o mérito das considerações de Sou branco... ou Nem
negro..., pois suscitariam réplica demasiado longa; o que move meus
comentários são observações amparadas a partir da avalanche de
mensagens iguais que se seguiram à do notável arianófilo das baias. Até
hoje, mais de dezena, a confundir as pobres percepções
antroposociológicas deste asno sobre a verdadeira identidade racial da
população brasileira, levando-me às conclusões subsequentes:
1. A maioria da população tupiniquim é de ascendência nórdica,
similar ou assim se reconhece. Reafirmo, desse modo, minha condição
sempiterna e próxima à extinção de pelagem sete, portanto integrante de
minoria excluída;
2. Não sendo branco, índio, amarelo, moreninho ou negro de alma
branca, e sofrendo invectivas virtuais do tipo de Nem negro..., acabo
de fundar grupo quilombola combatente para defender-me de tais ataques e
lutar pela sobrevivência da negritude em nossas plagas, diante do que,
contrariado, sou compulsado a vestir a pele de racista oprimido;
3. Criado à beira do Turano nos anos 60, sem as chiques UPP atuais,
depois engajado nos ritos da nobre Cavalaria, julgo dispensável
reafirmar minha natureza congênita de machista irretratável;
4. Sendo preto, racista e machista, assim triplamente excluído nos
idos correntes, julgo merecer o beneplácito da inclusão no rol das
cotas, seja lá para o que e onde elas forem aplicáveis;
5. Alerto o esmagador contingente de arianos, nórdicos e
escandinavos integrantes da turba pátria já dispor este exótico
espécime racial de armamento dissuasor, em face transgressores da
minha cota de tolerância internáutica. Trata-se do vil poema Neguinho,
doce antídoto contra os e-mail de conteúdos acacianos, repetitivos ou
redundantes; revelo que dois correspondentes diletos já foram
agraciados com os versos torpes do opúsculo, no qual pretendi ser tão ou
mais chato do que eles tem sido comigo.
Agradeço ao gentil repassador de Sou branco..., reintitulado Nem
negro..., pois sem a sua providencial mensagem estaria ainda a incorrer
na indesculpável suposição de ser a composição racial da nacionalidade
majoritariamente negra, mulata, ou parda. Agora, ciente de que somos
um país de ascendência com predominância ariana, assumo ser
crescentemente minoria.
Alfim, reitero o significado de Neguinho, o poema. Aos contemplados
com o recebimento dos versos nefandos, saibam estou a exprimir reação
iracunda diante do conteúdo de mensagens deles exaradas a minha humilde
caixa postal; se a curiosidade não os impedir, poderão a um simples
clique do mouse deletá-lo já na leitura do título, assim como a este
Preto, Racista, Machista, Cotista ...e chato.com.
Dom Obá III, internauta étnico desiludido, em franca desaceleração da web.
Rio, 19 de maio de 2012
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