Eram tempos de espera e ansiedade. Aproximava-se o Dia da Festa da Espada e os integrantes da garbosa Turma Marechal Mascarenhas de Morais
não cabiam em si de orgulho e sentimento de dever cumprido. As
rotineiras e cansativas entradas no PTM para afiar os cadetes no
treinamento para a festa, o portar a espada de oficial do Exército
Brasileiro, o experimentar diário dos novos uniformes que envergaríamos
como aspirantes, a organizada passeata após o jantar, com os fuscas zero
bala pelas ruas de Resende, as notícias sobre a viagem dos pais,
namoradas e madrinhas em direção a AMAN e, para não fugir a regra, o
famoso coral alertando a bicharada, calourada e afins que faltavam
quatro dias para o aspirantado, tudo fazia parte desses momentos
inesquecíveis, nossos últimos dias como cadete.
Além das preocupações normais com a nova etapa na vida profissional,
eu tinha uma importante atividade dias após receber a estrela de
aspirante: meu casamento com a Clara. Após quatro anos de namoro e
noivado, avaliei que era interessante aproveitar a presença de minha mãe
(meu pai falecera), irmãos e parentes em Resende para me casar. Estava
classificado em Goiânia (GO) e pretendia, após os dois anos de serviço
na unidade, tentar uma transferência para o Batalhão de Polícia do
Exército de Brasília. Dessa forma, o princípio da oportunidade tinha que
ser aproveitado.
Avaliei que precisaria dispor de uma quantia a mais do que fui
provido em recursos financeiros pela conclusão do curso, para somar
aquilo que receberia de presentes de casamento. Resolvi solicitar um
empréstimo de Cr$ 9.000,00 (nove mil cruzeiros) na CAPEMI. A entidade
tinha realizado uma palestra na AMAN sobre a necessidade de o militar
possuir um seguro de vida e oferecia a oportunidade do futuro aspirante
dispor dessa citada quantia como empréstimo consignável.
Acredito que o fato tenha acontecido na quinta-feira antes do dia da
Entrega da Espada. O recebimento dos cheques do empréstimo da CAPEMI se
fazia por ordem alfabética nas dependências da SAM, ali ao lado do CC.
Esperei com muita calma, já que meu nome é Valter. No momento da entrega
do cheque, lembro-me que, entre outros estava na fila o Walber
Guerreiro, do Curso de Infantaria. Aproximei-me e o representante da
CAPEMI, trajando um terno preto, entregou-me um cheque no valor de oito
mil e novecentos e vinte e poucos cruzeiros.
Recusei-me a assinar o recebimento do dito cheque, argumentado que o
valor correto era nove mil cruzeiros. O cidadão disse: aspirante,
existem descontos de taxa de seguro, risco saúde, queda da bolsa de New
York, vitória do Flamengo, eleição do “cacareco” e outras pendências
normais do mundo financeiro. Esse procedimento está correto e é
praticado com todos os que solicitam empréstimo. Não se preocupe, está
tudo correto.
Havia, na sala da SAM, um cartaz da CAPEMI fazendo referência à
possibilidade do empréstimo, bem elaborado e ostentava, em destaque, o
valor de nove mil cruzeiros. Acho que era o limite que nós, os
aspirantes, podíamos receber, dentro de uma margem consignável. Apontei
para a propaganda da CAPEMI e disse: entendo que o valor que eu
solicitei é o que se encontra ressaltado neste cartaz da sua empresa.
Ali, não explica nada sobre descontos.
Encontrava-se presente no local, outro cidadão de terno, aparentando
ter uns sessenta e poucos anos de idade. Virou-se o meu interlocutor e
disse: general, o cadete recusa-se a receber o cheque. Pronto. Levei uma
enquadrada. Antes era aspirante, agora voltei a ser cadete e estava
criando problema ao desenrolar da atividade. A idéia de dispor dessa
importância para o casamento sofria o primeiro abalo. Pensei em
desistir, não do casamento. Entretanto, eu estava correto. Segui em
frente.
O general, muito educado, tornou a me explicar as razões para que a
CAPEMI realizasse aquele procedimento rotineiro de abater do montante
solicitado os descontos obrigatórios. Eu, na posição de sentido,
escutava e, como resposta, apontava o cartaz. Mantive a posição e estava
decidido: recebia o que tinha solicitado ou não haveria empréstimo.
Nesse momento, o Walber manifestou-se afirmando que estava solidário
comigo e não receberia o cheque com descontos. Momento de tensão.
A experiência do general, chefe militar, valeu nessa hora. Ele disse:
cadete, acho que não agimos com a transparência que se faz necessário
em transações como esta. Vocês deviam ser informados de tudo, inclusive
os descontos obrigatórios. Vou comunicar a direção da CAPEMI o fato e
gostaria que você comparecesse na sede da instituição na segunda-feira,
pois é o dia de reunião da diretoria e seu caso, fatalmente, será
avaliado. Despedimo-nos, com a promessa de novo encontro no dia
aprazado.
Na segunda-feira, após a missa e o baile, compareci a sede da CAPEMI.
Se não me engano, fica na rua Sete de Setembro, no centro do Rio de
Janeiro. Lá, fui recebido pela secretária da direção da CAPEMI e, pouco
tempo depois, o general surgiu na sala e entregou-me um cheque nominal
no valor de Cr$ 9.000,00. Emocionado, ele disse: a direção da CAPEMI
reconhece que precisa modificar o relacionamento com a AMAN, no tocante a
empréstimos destinados aos aspirantes. Decidiu, ainda, devolver a todos
os aspirantes, seus colegas, que foram penalizados com os descontos
obrigatórios, a importância recolhida à maior. Pretende, também, alterar
a palestra ministrada para os futuros aspirantes, de maneira a permitir
um esclarecimento amplo e transparente a respeito da transação com
empréstimos financeiros. Finalmente, concluiu: os cartazes serão
recolhidos e passarão por aperfeiçoamentos.
Saí com um sorriso de vitória estampado na face. Venceu a ousadia do
cadete. O valor descontado no empréstimo foi ressarcido pela CAPEMI para
todos que o realizaram, conforme pude averiguar com os companheiros do
36º BIMtz. Não posso afirmar se, a época, um documento da CAPEMI
informou a decisão de devolver os descontos. Provavelmente, não. O
INFORMEX não circulava. Alguns nem perceberam a devolução. Aspirante da
MMM não se preocupava com contracheque. Se o líquido estava próximo
daquilo depositado no mês anterior, nada a reclamar.
Ao relembrar este “causo’, fiz questão de consultar a pasta com as
minhas alterações. Nela está escrito e transcrevo: “CONSIGNAÇÃO –
AVERBAÇÃO: Em 2 Jan, foi público ter sido mandado averbar nos seus
vencimentos, em favos da CAPEMI, as importâncias de Cr$ 40,00 e Cr$
381,00 a partir de fev 73, referente a pecúlio e empréstimo,
respectivamente ( pecúlio: sem prazo e empréstimo por 24 meses).
Entendo, agora, que aquele general deveria se tornar o patrono do
atual PROCON. Ele percebeu a cerca de trinta e sete anos atrás, que
aquilo era uma propaganda enganosa. Era um homem a frente do seu tempo.
Simões Junior – Cadete Nr 1247- C Inf.
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